Em 1997, uma colega de classe me confidenciou que se, ao longo do mesmo dia, eu cuspisse no chão três vezes, o capeta puxaria meu pé na cama à noite. Oprimido pela hipótese, recorri à professora, que estava ao lado, para confirmá-la. "Humpft!", ela respondeu com seu porte grave e trejeitos de Dilma Rousseff.
Analisando os anos que se seguiram, hoje sei o quão custoso foi tentar extrair alguma verdade a partir daquele Humpft. Meus pensamentos vagabundos colocaram o Humpft em todos os cantos da casa - e do universo - para contemplá-lo à distância sob todos os prismas de que eu dispunha.
Quando o Humpft estava na rack, parecia-me apenas uma manifestação de descaso e que, portanto, seria um absurdo até mesmo acreditar que o capeta existia. Mas quando o Humpft estava orbitando ao redor de Saturno, assomava-se-me a enorme ameaça de que eu não deveria de modo algum visitar esses assuntos tão perigosos. Então a visita do capeta me parecia de uma iminência tão real que eu me via reverenciando essa superstição com um temor quase religioso.
Enquanto meus devaneios não chegavam ao cerne do Humpft, as únicas medidas paliativas para essa minha aflição eram sempre engolir saliva e cobrir meus pés ao dormir, como se a criatura que gozasse da onisciência de contar minhas cusparadas onde quer que eu estivesse fosse incapaz de levantar um cobertor. Bom, talvez eu não cresse realmente que essa criatura hipotética seria incapaz de levantar um cobertor, mas com os pés de todo cobertos talvez eles não sentiriam a temperatura e a textura de suas mãos.
O que aconteceu nos anos seguintes foi o cansaço desse mistério me vencer. Com a consciência atormentada, construí uma jangada com bambus e assim abandonei o Humpft, que me encarava, implacável e sisudo, na praia de uma daquelas ilhas da Polinésia. Lembro-me bem de seu olhar infalível se volvendo a mim aonde quer que eu fosse e, mesmo sem nenhuma palavra, me condenando pela covardia de minha desistência.
"...e assim abandonei o Humpft, que me encarava, implacável e sisudo, na praia de uma daquelas ilhas da Polinésia"
Mas não me arrependo de ter desistido dele. Na época, eu recebi um chamado do ceticismo, que me oferecia o melhor suporte ideológico e o mais acolhedor que eu já recebi até agora na vida.
Hoje, adulto (no sentido de já não ter idade para - risos - ir a um pediatra), minhas superstições resumem-se a birras, como não abrir a porta ao sair da casa de um anfitrião, ou obsessões que eu invento. Uma delas, por exemplo, é tentar chegar à cozinha antes que soem três freadas da máquina de lavar sob a pena de - hm...- morrer!
Trata-se, na verdade, de uma região nebulosa, onde TOC de grau leve e superstições se confundem. E eu não sei se é TOC, superstição ou qualquer outra coisa que ainda hoje faz eu cobrir os pés totalmente antes de dormir. Prefiro pensar que é apenas uma tradição saudosista.
ps.: Não tenho conhecimento sobre as gradações do TOC, caso exista realmente uma sistematização oficial para seus níveis.
7 comentários:
Não conta, mas quando eu desço da cama no escuro, eu literalmente salto, que é pra nenhuma mão pegar o meu pé; quero dizer, ao menos se supondo que o braço do alienígena/entidade espiritual é do mesmo tamanho que o nosso. Eu me sinto como se o Iluminismo ainda não houvesse atingido as regioões escuras do quarto, como o guarda-roupa e o vão da cama.
Sabe, esse seu "humpf", me dá medo. Mas mesmo assim vou conseguir dormir à noite. A primeira parte de seu texto (vou chamar assim a parte acima da foto) me entusiasmou.
Eu também durmo sempre com os pés cobertos. É bastante estranha essa sensação de segurança que um edredom pode trazer... um pouco irracional, confesso, mas vai que, né?
Ótimo texto, bem escrito, interessante e engraçado! Parabéns.
Este conto foi postado no blog dos Contos Maringaenses! (contosmaringaenses.blogspot.com) Valeu, André! Sempre que quiser postar algo lá, fique a vontade. =)
Marcos Peres (Astorga)
Por que você não abre a porta ao sair da casa de um anfitrião?
(ótimo texto)
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