20 abril 2010

Devaneios de Supermercado

Eu estava na fila do caixa rápido, numa boa, pensando nas crianças mudas, telepáticas, e um bocado desagradado por contar com o funcionamento de apenas um dos meus fones de ouvido, insuficiente para me isolar dos hits de supermercado. Mas isso não é exatamente um problema a quem tem até sua lista mental de hits de supermercado preferidos (1).

Aconteceu que depois de muito minhas mãos cederem calor aos meus jantares congelados, quando já me aproximava de ser chamado, notei um grupo de adolescentes apressados que levavam pouca compra e pediam para os do início da fila lhes cederem o lugar.

Eu não faria muita objeção em atender-lhes o pedido, mas aí pensei que não teria direito. A guarda da posição que eu ocupo numa fila me compete, mas não me pertence. Pertence a todos que estão atrás, incluindo eu.

Se uma fila tem n pessoas e eu estou na posição x, há n-x pessoas atrás de mim e a posição que eu ocupo pertence a n-x+1 pessoas. Meu senso de justiça me faz concluir que a posse da posição x deva ser dividida igualmente, ou seja, a cada um cabe a fração equivalente a 1/(n-x+1) dessa posse. O último lugar, n, por exemplo, pertence a n-n+1 pessoas. Ou seja, só ao último. É por isso que podemos entrar livremente em filas. Faz sentido, não?

Democrático como sou, pensei também que a única maneira legítima deles serem privilegiados com a posição x, seria conseguir a anuência de mais que 50% de seus donos. Ou seja, ele precisaria do consentimento de [(n-x+1)/2] donos(2). Mas a fila era a de um caixa rápido e se eles falassem com os donos individualmente, certamente apareceriam novos donos durante a operação. Em busca de agilidade, eles poderiam mobilizar os donos e pedir que levantassem a mão os que concordavam. Mas provavelmente fracassariam também; ninguém acha essa questão tão relevante para se incomodar. Mas se, ao contrário, eles pedissem que levantasse a mão quem fosse contra a tomada do lugar x, possivelmente veriam um número de mãos menor que [(n-x+1)/2]. Poderiam até fazer melhor: propor a tomada logo à fila inteira e se contassem um número de mãos menor que [n/2], poderiam ocupar logo o primeiro lugar! Outra vez, a vontade dos donos seria manipulada por sua presumível falta de atitude, afinal ninguém quer ficar levantando a mão para se incompatibilizar com outras pessoas em troca de coisa pouca.

Mas eles desistiram antes de chegarem pedir o lugar a mim... E - ah! - eu também não iria lhes explicar tudo isso, nem sugerir qualquer coisa; também não quero me incomodar por pouca coisa.

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(1) Links para alguns títulos da lista: (1) (2) (3) (4) (5)
(2) Os colchetes representam a função teto. Aquilo que eles resguardam é transformado no menor inteiro maior ou igual ao conteúdo resguardado. Assim, por exemplo, [5,1] = [5,9] = [6] = 6.

6 comentários:

Carolina disse...

Vai se tratar, André.
*:

Nina. disse...

só "another day in paradise" também está entre os meus hits preferidos de supermercado.

Gustavo disse...

Gênio! Maior poeta vivo (nenhum sentido)!

Nayara Gonzalez disse...

Falando em hits de supermercado, nunca mais ouvi aquela música que tocava no mercadorama... "Nós fomos feitos um pro outro, pode crer..."

Adorei o teorema das filas, mas espero que não vire moda... Não quero que fique burocrático demais o processo de me "ajuntar" aos meus amigos nas filas no RU ou do Wonka.

Anônimo disse...

André Lindo! (L)
Ésse2Ésse211!
Bjinhussssssss!1

Bruno de Abreu disse...

Fiquei pensando num haikai pra isso. Mas matemática tem muitas sílabas e ia acabar trocando maringá por Mara, de maravilha. Achei melhor não.

Tava pensando: a gente entenderia muito mais das coisas se não se ocupasse só em tentar entendê-las, mas principalmente em contemplá-las. Isso vale tanto pra matemática quanto pra poesia. Esse texto seu tem bastante disso, não?