05 maio 2012





Morar Sozinho



Eu uso uma faca para passar requeijão no pão, mas posso passar com o dedo também. Posso usar a mesma faca para passar requeijão nas paredes e depois passá-la no avental, na esponja, nos olhos. Com a mesma faca e sem lavá-la, posso apertar o parafuso do armário, esfaquear o sofá, operar uma cesárea no travesseiro, rasgar a embalagem de bisnaguinha. Posso rasgar todas as embalagens de bisnaguinha ao mesmo tempo e, enquanto limpo as unhas na ponta da faca, posso sonhar com todas as embalagens de bisnaguinha que ainda hei de rasgar.

A Debâcle do Orkut


A seguir eu reproduzo o texto que escrevi ao pedirem anonimamente que eu comentasse sobre a "debâcle" (declínio) do Orkut. Paralelamente abracei o desafio absurdinho de superpovoar o texto de galicismos e afetar um tom meticulosamente elitista.

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Eu não uso mais o Orkut. Ninguém usa. É demodé e você sabe disso. Mas não fechei minha conta e pretendo mantê-la aberta por tanto tempo quanto for possível. Sou — sabe? — muito apegado a minhas memórias e não quero destruir os indícios de minha passagem por aquela civilização. À propos, a palavra não deve ser outra. Naquelas páginas azul-bebê, pessoas viveram e se comunicaram, construíram identidades, fortaleceram convívios, delimitaram tribos. Uma complexa rede foi tecida por seus usuários, que registraram lá seu esprit du temps. Agora mesmo fui ter um coup d'oeil em meu perfil e a sensação não foi outra: caminhar sobre os escombros inférteis de uma civilização exterminada, como fizeram os tais escafandristas daquela canção do Chico.


Rever as comunidades de que eu era membro foi estar diante de um bric-à-brac. Minha coleção de Tazo se perdeu, mas descobri na coleção de comunidades do Orkut um novo vertedouro de nostalgia. Aliás, comparando o Orkut do período helenístico com o Facebook de hoje, eu elegeria as comunidades como sua raison d'être suprema. Sempre se descobria uma nova comunidade de humor maravilhoso e bons mots em sua descrição. Como poderei me esquecer de "Foda-se quem odeia dinossauro", "achei na net (e não no chão)","Não vulgarizem Johann Strauss", "Ñ SABE BRINK DEVOLVE OS OMINHO", "Fandangos Caindo no Chão", "Festas Melancólicas", "Ninguém vai gostar de você (Nunca, ok?)" e tantas outras? Que o êxtase dessa lembrança, contudo, não me deixe esquecer que as comunidades eram facas de dois gumes e que frequentemente, no Orkut de pessoas aparentemente interessantes, suas comunidades nos deixavam entrever o profundo tédio de suas ambições, como amar batata frita, odiar acordar cedo, querer ser pego de jeito ou não ser pego e sua inveja faz a minha fama.

Mas esqueçamo-nos dos medíocres. A história não lhes pertence. Pois quanta cultura floresceu naquele universo cerúleo! Qualquer filólogo do tiopês reconheceria no Orkut seu ambiente de desenvolvimento e ápice. Nessa minha última visita, entre as ruínas de construção e rastros de glitter de cursores dos posteriormente incluídos, encontrei o manuscrito de "Cthulhu: receitas para risoto", texto de esplenderosa ironia e um je ne sais quoi de brilhantismo.

No Brasil o Orkut se tornou succès fou em 2005. Ao longo do governo Lula, você sabe, os déclassés saltaram de classe en masse e nada os deteve. Tendo eles conquistado o savoir-faire das ferramentas virtuais, tudo sucumbiu às porradas do aríete com que os novos inclusos e velhos parentes reclamavam passagem. Estupraram nossas mulheres, dispersaram o gado, pularam na piscina, profanaram nossa literatura, decapitaram os líderes e erigiram seus monumentos de gifs religiosos. 

A invasão bárbara impôs sua conduta e modo de vida insustentáveis. A partir de 2009 o Orkut já começou a dar sinais de declínio. À medida que suas reservas foram sendo consumidas; seus moinhos, abandonados; seu solo, exaurido; suas estradas, esburacadas; toda a população migrou gradativamente para o Facebook. Não preciso ser clairvoyant para supor que também este vive o risco da degradação não muito distante. Assim se vê a cada imagem do Danilo Gentili acompanhada de um texto de sabedoria de rodoviária que é diariamente compartilhada não por sete, mas por setenta mil usuários.