14 outubro 2010

Sobre Superstições

Em 1997, uma colega de classe me confidenciou que se, ao longo do mesmo dia, eu cuspisse no chão três vezes, o capeta puxaria meu pé na cama à noite. Oprimido pela hipótese, recorri à professora, que estava ao lado, para confirmá-la. "Humpft!", ela respondeu com seu porte grave e trejeitos de Dilma Rousseff.

Analisando os anos que se seguiram, hoje sei o quão custoso foi tentar extrair alguma verdade a partir daquele Humpft. Meus pensamentos vagabundos colocaram o Humpft em todos os cantos da casa - e do universo - para contemplá-lo à distância sob todos os prismas de que eu dispunha.

Quando o Humpft estava na rack, parecia-me apenas uma manifestação de descaso e que, portanto, seria um absurdo até mesmo acreditar que o capeta existia. Mas quando o Humpft estava orbitando ao redor de Saturno, assomava-se-me a enorme ameaça de que eu não deveria de modo algum visitar esses assuntos tão perigosos. Então a visita do capeta me parecia de uma iminência tão real que eu me via reverenciando essa superstição com um temor quase religioso.

Enquanto meus devaneios não chegavam ao cerne do Humpft, as únicas medidas paliativas para essa minha aflição eram sempre engolir saliva e cobrir meus pés ao dormir, como se a criatura que gozasse da onisciência de contar minhas cusparadas onde quer que eu estivesse fosse incapaz de levantar um cobertor. Bom, talvez eu não cresse realmente que essa criatura hipotética seria incapaz de levantar um cobertor, mas com os pés de todo cobertos talvez eles não sentiriam a temperatura e a textura de suas mãos.

O que aconteceu nos anos seguintes foi o cansaço desse mistério me vencer. Com a consciência atormentada, construí uma jangada com bambus e assim abandonei o Humpft, que me encarava, implacável e sisudo, na praia de uma daquelas ilhas da Polinésia. Lembro-me bem de seu olhar infalível se volvendo a mim aonde quer que eu fosse e, mesmo sem nenhuma palavra, me condenando pela covardia de minha desistência.


"...e assim abandonei o Humpft, que me encarava, implacável e sisudo, na praia de uma daquelas ilhas da Polinésia"

Mas não me arrependo de ter desistido dele. Na época, eu recebi um chamado do ceticismo, que me oferecia o melhor suporte ideológico e o mais acolhedor que eu já recebi até agora na vida.

Hoje, adulto (no sentido de já não ter idade para - risos - ir a um pediatra), minhas superstições resumem-se a birras, como não abrir a porta ao sair da casa de um anfitrião, ou obsessões que eu invento. Uma delas, por exemplo, é tentar chegar à cozinha antes que soem três freadas da máquina de lavar sob a pena de - hm...- morrer!

Trata-se, na verdade, de uma região nebulosa, onde TOC de grau leve e superstições se confundem. E eu não sei se é TOC, superstição ou qualquer outra coisa que ainda hoje faz eu cobrir os pés totalmente antes de dormir. Prefiro pensar que é apenas uma tradição saudosista.


ps.: Não tenho conhecimento sobre as gradações do TOC, caso exista realmente uma sistematização oficial para seus níveis.

13 outubro 2010

Reflexão sobre Cultura & Bom Gosto

Dentre os ataques à personalidade das pessoas, uma das que mais presencio é o ataque à cultura, quando o agressor a julga de mau gosto, escassa ou até mesmo ausente. Eu acho que cultura, assim como inteligência, sexiness e muitas outras coisas, se dá em graus; decompõem-se em diversas matizes e para cada uma dessas matizes há um nível correspondente de profundidade. Dizer se alguém é ou não é culto envolve tantas variáveis que um resultado expressamente quantitativo ("muito culto", "pouco culto") a essa análise costuma tender à invalidade.

Lembro-me de, há uns anos, frequentar um modesto projeto de mostra de cinema realizado por um verdadeiro freak no assunto. Durantes os debates, ao mesmo tempo em que ele pisoteava, por exemplo, Tarantino, ele estava vestido com uma camiseta de Good Charlotte. Ou seja, enquanto sua matiz de cinema era robusta e sofisticadíssima, a de música popular tinha um vetor atrofiado e apontado para a boçalidade.

Mesmo que o last.fm indique compatibilidade máxima ou que vários outros nomes na vida coincidam, os motivos que levam uma pessoa a declarar-se apreciador de algo podem ser tão distintos dos de outra pessoa que a aproximação de seus apreciadores em torno do mesmo objeto pode ser fundamentalmente vazia.

Um exercício mental de longa data que tem mostrado bons resultados foi o de não tirar conclusões (boas ou ruins) nem por causa de Tarantino, nem por causa de Good Charlotte. E é porque eu fico imaginando que, pelos filtros oculares de outras pessoas, eu possa ser igualmente desqualificado por não saber beber whisky ou por não saber onde o Pelé marcou seu milésimo gol. É verdade que eu não consigo evitar a construção imaginária de um mosaico de tags para cada pessoa, mas sei que mais valem as atribuições e pareceres individuais a cada uma delas.